Artigos | Postado em: 11 fevereiro, 2025

Financiando a transformação da educação pública antirracista

Por David Archer, Diretor de Programas da ActionAid Internacional e representante global do Projeto SETA

Os sistemas de educação pública ao redor do mundo são cronicamente subfinanciados e desiguais. Embora a educação devesse e pudesse ser a força mais poderosa para promover a igualdade, o seu acesso e o sucesso na educação estão cada vez mais estratificados, o que reforça as injustiças históricas, que deveriam ser combatidas.

As desigualdades globais no financiamento da educação são alarmantes. Os dados mais recentes mostram que, aproximadamente, mais de oito mil dólares, cerca de  R$ 32 mil reais, são gastos, anualmente, na educação de uma criança em países de alta renda, enquanto apenas 55 dólares, o equivalente a R$ 316 reais por criança são gastos, anualmente, em países de baixa renda, ou seja, 155 vezes menos.

Existem também profundas desigualdades dentro dos países. No Brasil, a Pesquisa Percepções Sobre o Racismo no Brasil do Projeto SETA e Instituto Peregum (2023) revelou que o racismo é o principal fator gerador de desigualdades, com 81% dos entrevistados afirmando que o país é racista, e 64% dos jovens de 16 a 24 anos relataram que os contextos educacionais são os locais onde mais vivenciam o racismo. As disparidades entre crianças brancas e negras, quilombolas e indígenas em todos os indicadores da educação básica também são persistentes, sendo particularmente agudas entre jovens de 11 a 17 anos. Em novembro de 2024, a Reunião Global de Educação (GEM) convocada pela UNESCO,  realizada em Fortaleza, abordou essas desigualdades globais e nacionais, enfrentando o racismo tanto dentro dos sistemas de educação pública quanto no financiamento global da educação.

Apesar da existência da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, as agendas de políticas de educação globais e nacionais quase nunca abordam o racismo diretamente. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável sobre Educação, embora enfatize a importância da equidade e da inclusão de forma geral, não faz referências específicas à justiça racial. Não existem dados sistemáticos sobre igualdade racial na educação coletados pelo Instituto de Estatísticas da UNESCO e nem desagregação confiável de dados ou monitoramento global. A maior iniciativa global sobre educação, a Parceria Global para a Educação, não fez referências notáveis à equidade racial ou ao antirracismo na educação. Existem desafios, pois o racismo assume formas distintas e têm histórias particulares  em diferentes países. Porém, existem raízes comuns significativas nas histórias estruturais contínuas de colonialismo, etnonacionalismo e despossessão indígena. Certamente, deveria haver uma certa urgência em reunir aprendizados sobre políticas e práticas progressistas que sejam eficazes no enfrentamento do racismo por meio da educação em contextos diversos.

Por uma educação antirracista

No último ano, o Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista) tem mapeado iniciativas ao redor do mundo que buscam enfrentar questões de discriminação racial na educação, compreendendo diversas intervenções educacionais antirracistas e o trabalho que está sendo feito para construir movimentos de educação antirracista em diferentes contextos locais e nacionais.

No Brasil, o SETA reúne movimentos negros, indígenas, quilombolas e educacionais para transformar o sistema de educação pública. Fazem parte da iniciativa: ActionAid, Ação Educativa, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, CONAQ, Geledés, Makira-Eta e a UNEafro Brasil.

O escopo desse trabalho no Brasil disponibiliza ideias dos investimentos necessários para, realmente,  implementar um sistema público de educação antirracista. Para isso, é necessário apoiar o diálogo intergeracional sobre racismo e educação nos lares, escolas, locais de trabalho e na mídia. Dados novos, com uma abordagem interseccional para o monitoramento e avaliação da educação, são urgentemente necessários. É preciso, também, um diálogo político sobre educação antirracista nos níveis federal, estadual e municipal. Educadores e gestores educacionais precisam ser treinados e apoiados com bons recursos de educação antirracista. Jovens e estudantes devem ser ativamente envolvidos na incorporação de práticas educacionais antirracistas.

O aumento de investimentos é claramente necessário para alcançar uma educação antirracista, mas esses investimentos são difíceis de fazer em um sistema de educação pública subfinanciado, seja no Brasil ou em qualquer outro país. Portanto, devemos vincular a ação pela educação antirracista à ação que transforme o financiamento mais amplo da educação. Em termos relativos, o Brasil é um ponto de referência global positivo para compromissos com o financiamento doméstico da educação

O financiamento doméstico será sempre a chave. A Comissão de Educação observa que 97% do financiamento da educação vem de fontes domésticas, e mesmo em países de baixa renda, apenas 12% do financiamento da educação vem de ajuda ou empréstimos. No entanto, o discurso global sobre educação é dominado pela indústria de ajuda, com doadores frequentemente exercendo um enorme poder sobre a direção das reformas educacionais em países de baixa e média renda. Relações de poder colonial são perpetuadas de maneiras perturbadoras por agências que sempre pensam o que é melhor. Talvez, então, não deveríamos ficar tão surpresos de que a equidade racial na educação e a educação antirracista não estejam na agenda global.

Caminho traçado para o financiamento da educação

A Cúpula de Transformação da Educação dos Chefes de Estado na ONU, realizada em 2022, traçou um caminho radicalmente diferente para o discurso global sobre o financiamento da educação. Pela primeira vez, a atenção global se afastou da ajuda e dos empréstimos e se concentrou no financiamento doméstico – e, particularmente, nas forças estruturais que minam o financiamento doméstico da educação. O documento de discussão da Cúpula e o Chamado à Ação sobre o Financiamento da Educação mostraram como a atenção precisa se desviar de um foco estreito sobre a parcela dos orçamentos alocados para a educação, para abordar as forças estratégicas que a impactam, notadamente relacionadas à justiça fiscal, justiça da dívida e ao fim da austeridade.

Os países preocupados com o financiamento da educação precisam ser capazes de aumentar suas receitas tributárias por meio de reformas fiscais progressivas – o que é difícil quando as regras fiscais globais foram definidas por 60 anos pelos países ricos da OCDE, facilitando fluxos financeiros ilícitos

Um novo briefing lançado na Reunião Global de Educação da UNESCO intitulado Dear Ministers of Finance delineia como existem alternativas que os Ministros da Fazenda podem traçar para um caminho diferente que transforme o financiamento da educação. Por meio de ações sobre impostos, dívida e austeridade é possível liberar os recursos necessários para criar sistemas de educação pública mais equitativos, de melhor qualidade e antirracistas. Mas isso requer uma mudança da visão de mundo (às vezes sutilmente) racista que moldou tanto a educação quanto a formulação de políticas econômicas por gerações. Enquanto isso, na mesma Reunião Global de Educação, uma Carta Aberta também foi publicada, convocando a comunidade educacional global a pôr a educação antirracista no centro dos debates políticos futuros.

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David Archer é Head de Programas e Influência do Secretariado Global da ActionAid, apoiando o trabalho sobre mudança de sistema para justiça climática, justiça econômica, serviços públicos e direitos das mulheres. David se qualificou como professor e pesquisou programas de aprendizagem de adultos inspirados por Paulo Freire em toda a América Latina, desenvolvendo a abordagem Reflect para alfabetização e poder na década de 1990. Ele é cofundador da Campanha Global pela Educação (www.campaignforeducation.org) e presidente da Iniciativa Direito à Educação (www.right-to-education.org).  Desde 2021, David é o representante global do Projeto SETA. Em 2022, ele foi o Coordenador de Partes Interessadas para a Cúpula de Transformação da Educação dos Chefes de Estado da ONU Action Track on Financing.

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O PROJETO SETA – SISTEMA DE EDUCAÇÃO PARA UMA TRANSFORMAÇÃO ANTIRRACISTA É UM PROJETO APOIADO PELA FUNDAÇÃO W. K. KELLOGG, DESDE 2021, QUE REÚNE ORGANIZAÇÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS EM ATUAÇÃO CONJUNTA POR UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA ANTIRRACISTA E DE QUALIDADE.