Postado em: 27 julho, 2023

Pesquisa inédita encomendada pelo Projeto Seta e Instituto Peregum revela racismo como principal fator de desigualdades

Quarenta e quatro por cento da população brasileira considera raça, cor e etnia como o principal fator gerador de desigualdades no país, e mais da metade (51%) já presenciou alguma situação de racismo. Os dados são da pesquisa inédita “Percepções sobre o racismo no Brasil”, realizada pelo IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica). O estudo foi encomendado pelo Instituto de Referência Negra Peregum e pelo Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), e ouviu 2 mil pessoas de 16 anos ou mais, a fim de entender a opinião da população brasileira relativa à percepção sobre racismo. O intervalo de confiabilidade da pesquisa é de 95% e a margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. O estudo teve abrangência nacional, foi realizado em 127 municípios brasileiros das cinco regiões do país durante o mês de abril de 2023.

Dados disponíveis no site: http://www.percepcaosobreracismo.org.br

Violência racial é percebida pela maioria da população brasileira

O levantamento aponta que 81% das pessoas participantes concordam que o Brasil é um país racista, sendo que 60% concordam totalmente e 21% concordam em parte. Os índices de concordância com relação a esse tema se mantêm expressivamente altos independemente de gênero, faixa etária, escolaridade, região do país, porte da cidade, renda familiar, religião, orientação sexual e orientação política. Além disso, 96% da população declara que as pessoas pretas são as que mais sofrem racismo e 88% concordam que esse grupo populacional é mais criminalizado do que as pessoas brancas, sendo que 76% concordam totalmente e 12% concordam em parte.

No que diz respeito à abordagem policial, 79% concordam que ela é baseada na cor da pele, tipo de cabelo e tipo de vestimenta, sendo 63% das pessoas ouvidas concordam totalmente e 16% em parte. Ainda nesse contexto, 84% concordam que pessoas brancas e negras são tratadas de forma diferente pela polícia, sendo 71% concordam totalmente e 13% em parte.

“Esses dados escancaram o racismo no Brasil, e demonstram que a população em geral reconhece o racismo em uma das suas faces mais cruéis: a violência institucional, no caso específico, a policial. De forma prática, ela é reflexo do racismo que estrutura nossas instituições, da maneira como naturalizamos a violência contra as pessoas negras e as pessoas moradoras das periferias – cuja maioria é negra. Trazendo esse olhar para o campo da educação, quando o jovem não se reconhece no ambiente escolar, fica ainda mais suscetível à evasão e às abordagens discriminatórias”, analisa Ana Paula Brandão, gestora do Projeto SETA e diretora programática na ActionAid.

Para Vanessa Nascimento, diretora executiva do Instituto de Referência Negra Peregum, a falta de informações precisas e atualizadas de dados que norteiam as políticas públicas ainda é um problema crônico no Brasil: “Nesse contexto, uma pesquisa como a que estamos lançando é de fundamental importância prática e simbólica. Os dados aqui reunidos certamente apoiarão as ações de incidência política, subsidiarão as articulações da sociedade entre seus pares e com o poder público, como para ações específicas para mulheres negras”.

Racismo sistêmico: violência verbal é identificada como a principal forma de manifestação do racismo

A pesquisa revela ainda um paradoxo na forma como a população brasileira reconhece as formas de materialização do racismo, seguindo a lógica já conhecida de afirmação da existência desse fenômeno concomitante à negação da sua existência na própria prática ou nos espaços privados e mais íntimos de suas vidas.

Por exemplo, se 81% concordam totalmente ou em parte que o Brasil é um país racista, apenas 11% afirmam que têm atitudes ou práticas racistas, 10% que trabalham em instituições racistas, 13% que estudam em instituições educacionais racistas, 12% que sua família é racista, 36% que convivem com pessoas que têm atitudes racistas e 46% que convivem com pessoas que sofrem racismo. Isso significa que a população brasileira identifica que o país é racista, mas tem dificuldade de nomear o racismo em suas experiências pessoais.

Mais um dado que se destaca na pesquisa é que se maioria concorda que o Brasil é um país racista, apenas 65% concorda totalmente (57%) ou em parte (8%) com a criminalização do racismo no país.

Segundo o estudo, a principal forma de identificação da manifestação do racismo pela população brasileira é violência verbal, como xingamentos e ofensas (66%), seguida de tratamento desigual (42%) e violência física, como agressões (39%). Pessoas pretas são as que mais apontam sofrer racismo, considerando-se a variável raça/cor. Essa é uma evidência que o racismo é mais compreendido a partir da dimensão interpessoal do que da dimensão estrutural.

De acordo com Jaqueline Santos, consultora de monitoramento e avaliação do Projeto SETA, relatora da pesquisa e antropóloga, a negação do racismo no Brasil e sua respectiva invisibilidade se constituiu como um obstáculo para o reconhecimento público e à tomada de decisão para superar as desigualdades sofridas por pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas. No entanto, essa pesquisa revela que as lutas dos movimentos negros, indígenas e antirracistas surtiram efeitos nas últimas décadas, porque a população brasileira reconhece cada vez mais o racismo como um problema, apesar das limitações para compreender suas dimensões institucionais, estruturais e sistêmicas e para a visão crítica em seu espaços privados de convivência.

“Por um lado existe uma dificuldade de identificar o racismo estrutural e, por outro lado, a dificuldade de identificar o racismo no universo privado pela pessoa respondente, ou seja, no cotidiano das escolas, do trabalho, das famílias e outros espaços de convivência. É possível relacionar o cenário com o baixo percentual de pessoas que aprenderam sobre o racismo nas escolas de forma adequada”, afirma.

“O movimento negro denuncia há décadas o mito de que a democracia é igual para todos no Brasil, principalmente para jovens entre 16 e 24 anos, faixa etária mais impactada pelo racismo. O próximo passo é avançar na qualificação deste debate, pois, como já dizia Lélia Gonzalez, o racismo no Brasil é profundamente disfarçado”, comenta Márcio Black, coordenador de projetos do Instituto de Referência Negra Peregum.

Racismo em espaços destinados à formação

As instituições de ensino são idealizadas como espaços onde não há lugar para atos discriminatórios, no entanto, de acordo com o levantamento, 38% das pessoas que afirmam já ter sofrido racismo apontam a escola/faculdade/universidade como locais onde essa violência ocorreu. Mulheres pretas são as que mais percebem que raça/cor é o principal motivador de violência nas escolas (63%). Nos espaços da educação básica, as pessoas pretas foram as que mais vivenciaram agressão física, 29%. Para 64% das pessoas jovens entre 16 e 24 anos, o ambiente educacional é onde mais sofrem racismo.

Considerando outro ponto sensível no campo da educação, a pesquisa aponta a necessidade de políticas públicas de combate ao racismo. Nesse sentido, 49% da população brasileira discorda que o Brasil possui políticas públicas suficientes para garantir a inclusão e mais oportunidades para pessoas negras, sendo 20% em parte e 29% discorda totalmente. Em relação a cotas raciais em específico, 74% da população brasileira é a favor da reserva de vagas em vagas em faculdades/universidades, concursos públicos e empregos em empresas privadas para a população negra e/ou indígena.

A lei federal 10.639/2003 que, neste ano completa 20 anos, tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro dos componentes curriculares que já fazem parte da grade-escolar dos ensinos fundamental e médio. Na prática, porém, a realidade é outra, apenas 46% aprenderam história e cultura afro-brasileira, 37% sobre racismo, 25% história e cultura africana. A abordagem sobre história e cultura afro-brasileira na escola para aqueles que aprenderam essa temática foi considerada muito adequada por 42% dos respondentes, pouco adequada por 47% e nada adequada por 9%.

“A violência em espaços escolares talvez seja a parte mais dramática das violências a que nossas crianças e jovens estão expostos. A escola deveria ser um ambiente seguro, de socialização. Porém, é um espaço que acaba propiciando episódios de violência física e simbólica. Precisamos entender que o racismo também é um gerador de violência. Xingamentos, exclusão e bullying acabam atingindo muito mais crianças negras e indígenas”, comenta Ana Paula Brandão.

De acordo com a gestora, a violência física é talvez a mais visível entre as formas de violência institucionalizada que não permite que criança e jovens negros alcancem todo seu potencial e tenham direito à uma educação pública, laica e de qualidade. “Sabemos que é dever do Estado garantir indistintamente, por meio da educação, direitos iguais para o pleno desenvolvimento de todos e de cada um, enquanto pessoa, cidadão ou profissional. É disso que trata a Lei 10.639/2003 e suas respectivas diretrizes, a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino”, conclui a gestora do Projeto SETA.

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O racismo estrutural no Brasil tem dificultado, de forma sistêmica, o acesso ao direito a uma educação pública igualitária e de qualidade pelos estudantes negros, quilombolas e indígenas. A qualidade da educação que as crianças recebem no Brasil é profundamente segmentada por status racial e socioeconômico. E, hoje, identifica-se que as lacunas entre crianças brancas e crianças negras, quilombolas e indígenas, em todos os indicadores da educação básica, são persistentes e mais graves para jovens de 11 a 17 anos. Crianças e jovens negros, quilombolas e indígenas são os mais propensos a abandonar a escola, têm maiores taxas de exclusão e menor nível educacional. Portanto, a eles são destinados os empregos de menor prestígio e salários mais baixos quando adultos. Enquanto isso, os alunos brancos internalizam as desigualdades raciais a que são expostos nas escolas e as replicam quando adultos. Quando se observa os indicadores de aprendizagem, conclui-se também que não há apenas mais barreiras de acesso à escola para crianças negras, quilombolas e indígenas, mas, que uma vez na escola, essas crianças são menos propensas a acessar à educação de qualidade.

O Projeto SETA busca realizar ações transformadoras com base em evidências resultantes de estudos que ajudam a compreender a complexidade das relações raciais no país e as problemáticas delas decorrentes que precisam ser enfrentadas. Neste sentido, prevê uma série de estudos com recortes nacional e regionais em seus territórios de intervenção, especialmente no Amazonas, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo. O objetivo é mapear a percepção da sociedade em geral, de profissionais da educação e estudantes sobre o racismo, as desigualdades raciais em geral e na educação, a efetividade das políticas de combate ao racismo, as lacunas de ferramentas e metodologias para fomento à equidade racial e as estratégicas bem-sucedidas e boas práticas nacionais e internacionais que podem inspirar ações de valorização da diversidade e das diferenças e de mitigação das desigualdades, especialmente na área de educação.

1) Pesquisa bianual de mapeamento de público sobre percepções do racismo pela sociedade brasileira.
2) Grupos focais bianuais sobre percepções do racismo pelas comunidades escolares.
3) Monitoramento e avaliação dos indicadores educacionais com análise dos indicadores da educação com foco em raça, gênero e território.
4) Estudos liderados pelas organizações que compõem o Projeto SETA sobre “educação escolar indígena”, “educação escolar quilombola”, “trajetória educacional de meninas negras”, “juventude negra, educação e violência”, “impacto da reforma do ensino médio no aprofundamento das desigualdades educacionais” e “construção participativa de indicadores e diagnóstico sobre qualidade na educação e relações raciais”.
Todas essas produções são/serão disponibilizadas publicamente para auxiliar a sociedade na construção de narrativas qualificadas, com base no retrato da realidade, em defesa da equidade racial na educação, além de orientar ações do projeto.

O PROJETO SETA – SISTEMA DE EDUCAÇÃO PARA UMA TRANSFORMAÇÃO ANTIRRACISTA É UM PROJETO APOIADO PELA FUNDAÇÃO W. K. KELLOGG, DESDE 2021, QUE REÚNE ORGANIZAÇÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS EM ATUAÇÃO CONJUNTA POR UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA ANTIRRACISTA E DE QUALIDADE.