Artigos | Postado em: 22 julho, 2024

Rumo a um quadro global para a educação antirracista

ActionAid Internacional, Projeto SETA e Departamento de Educação da Universidade de Bristol

Doutora Sharon Walker, professora em Justiça Racial e Educação da Faculdade de Educação Universidade de Bristol

O silêncio em torno do racismo nas arenas políticas de educação global permite que a injustiça racial se perpetue, com antigas hierarquias coloniais sendo mantidas e novas relações coloniais formadas.

Racismo é uma força estrutural mantida por sistemas e instituições políticas. Como a Declaração sobre a Raça e Preconceitos Raciais da Unesco afirma: “O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial”. Ao redor do mundo, professores, alunos, ativistas e organizações educacionais trabalham para abordar questões relativas ao assunto nestas diferentes dimensões, fazendo intervenções importantes e construindo movimentos nos seus contextos locais e nacionais. Entretanto,  e apesar da existência da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, tratado adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas,  as agendas políticas globais para a educação raramente abordam o racismo diretamente, mesmo quando tentam  tratar as questões de desigualdade educacional. 

O racismo não age sozinho. Ele tem convergência com outros sistemas de dominação – classicismo, patriarcado e capacitismo. A discriminação prospera num ambiente onde as pessoas são material e fisicamente inseguras. A luta contra a discriminação racial é, portanto, também uma luta pela solidariedade contra a pobreza, a alienação e a desigualdade. Por isso, é importante, em qualquer quadro “global” para a educação antirracista, que as interações entre diferentes estruturas de preconceito em contextos geopolíticos específicos sejam plenamente consideradas.

Para aprofundar esse debate que tenho desenvolvido no departamento de Educação da Universidade de Bristol, nos unimos a ActionAid e ao Projeto SETA – Sistema de Educação para uma Transformação Antirracista, com o objetivo de criar uma rede global sobre justiça racial na educação. E como resultado, em co-autoria com a professora Arathi Sriprakash, escrevemos para compartilhar nossas reflexões com a sociedade brasileira.

Conceitos fundamentais: racismo e suas diferentes formações

Processos sociais e políticos criam e fazem circular a falsa ideia de que a “raça” é real. Na verdade, há uma longa história de categorização de pessoas em diferentes grupos, um processo que pode criar divisões e hierarquias “raciais” dentro das populações. Portanto, embora a “raça” não seja algo “real”, o racismo é, e tem efeitos existentes concretos: as divisões e hierarquias criadas através da ideia de “raça” reforçam as desigualdades e a dominação em todos os níveis da sociedade, inclusive na educação.  

Frequentemente, haverá diferentes formas de racismo que interagem entre si em qualquer contexto. Isso ocorre porque muitas vezes existem vários tipos de forças estruturais em jogo: etnonacionalismo, expropriação indígena, neocolonialismo, violência antinegra e assim por diante.  Por exemplo, as estruturas do etnonacionalismo podem e criam discriminação contra grupos minoritários num país cuja população como um todo também foi oprimida através de estruturas do colonialismo europeu, como pode ser visto em toda a África, América Latina e Ásia. No Brasil, por exemplo, há discriminação sistemática contra as populações indígenas e negras. Na Índia, o casteísmo e o nacionalismo hindu criam uma opressão estrutural contra as minorias religiosas, os grupos de castas marginalizados e indígenas.

O que é antirracismo?

O antirracismo mantém o seu foco na raça e no racismo, os tornando visíveis e desafiando as estruturas de poder racializadas. Isto distingue-o de outras áreas de política e prática, como a inclusão e a diversidade, que muitas vezes não conseguem fornecer uma crítica adequada das estruturas sociais racistas que sustentam as interações sociais. A crítica é significativa para desafiar o status quo – as ideias, o conhecimento, as relações sociais e as práticas cotidianas que aceitamos como normais.   A postura crítica nas abordagens antirracistas fornece insights sobre a dinâmica social racializada a todos os envolvidos nos sistemas educativos. Por exemplo, desenvolve professores, administradores, formadores de professores, pesquisadores, analistas de dados, legisladores e alunos conscientes sobre raça, que questionam a situação atual, contestando o conteúdo curricular, práticas de avaliação, estruturas institucionais e resultados dos alunos.

O que envolve a educação antirracista?

A educação antirracista envolve a interrupção dos processos que reproduzem o racismo e os resultados racistas, o que exige uma mudança em todo o sistema.  Isto significa incorporar perspectivas, abordagens e financiamentos antirracistas no centro do desenvolvimento, por exemplo: formação de professores, recrutamento, progressão; pedagogias docentes; respondendo à voz do aluno; desenvolvimento curricular; avaliação e financiamento educacional. 

Para que a igualdade racial se transforme em uma prioridade nas estruturas globais de educação, destacamos a importância da formação de professores, que necessita de reforma em muitos contextos nacionais para dotar os profissionais da educação de competências, conhecimentos e recursos para compreender como funcionam os processos de raça e racismo na sociedade.  Intimamente relacionadas, as pedagogias (abordagens de ensino) antirracistas tornam-se possíveis quando os professores, em diferentes setores, trazem uma consciência da dinâmica racial para suas salas de aula.  Isso faz com que apoiar os educadores no desenvolvimento de conhecimentos e competências para a prática antirracista seja fundamental para interromper os ciclos de desigualdades raciais na educação.

É necessário, também, utilizar uma perspectiva antirracista ao analisar o financiamento da educação, desde o nível local até ao nível global. Significa, por exemplo, reconhecer a natureza neocolonial da arquitetura financeira mundial, com instituições como o FMI e o Banco Mundial, forjadas antes da maioria dos países africanos alcançarem a independência, continuando a impor políticas de austeridade que prejudicam o financiamento do setor. Significa desafiar as regras fiscais internacionais, estabelecidas pelo clube das nações ricas da OCDE, que continuam a facilitar a pilhagem e os fluxos financeiros ilícitos – deixando os serviços públicos cronicamente subfinanciados. Significa também olhar para o poder desproporcional da “comunidade de doadores” na definição da direção da reforma educativa em muitas partes do mundo – que limita a responsabilização dos governos perante os seus próprios cidadãos e tem falhado consistentemente em reconhecer o antirracismo como uma prioridade em sistemas educacionais. 

Assim, o antirracismo na educação não se preocupa apenas com o racismo tal como é vivenciado entre os indivíduos. Preocupa-se também com o racismo ao nível dos sistemas, estruturas e instituições; com as formas cotidianas pelas quais o acesso às oportunidades e os resultados na educação prejudicam os grupos racialmente marginalizados. 

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